Cidade

Carta de um sobrevivente

Sexta-feira, dia 2 de outubro de 1992. Duas horas da tarde, Pavilhão 9 da Casa de Detenção, onde tudo começou. Hoje faz dez dias que aconteceu o massacre. Mas ainda são muito fortes em minha memória as marcas de terror daquele dia.
Tudo começou com uma briga violenta e sangrenta de dois presos que se confrontavam a golpes de faca. Isso se deu às 2 horas no segundo andar, na sexta-feira. Um dos presos, muito ferido, não aguentou e enfraqueceu. Os seus companheiros, não satisfeitos com o resultado da briga, resolveram se vingar começaram tudo. Foi uma briga muito feia entre os presos, não todos, talvez um grupo de vinte e começaram tudo. Os funcionários do Pavilhão 9 tentaram interferir para controlar a situação, mas agindo de forma errada, à base de canadas de ferro, batendo em todos, até naqueles que não tinham nada a ver com o tumulto. Os presos, revoltados por apanhar, resolveram bater em alguns funcionários que, assustados, e extremamente amedrontados saíram correndo para fora do pavilhão, gritando que era rebelião. O pavilhão ficou abandonado pelos funcionários e apenas com os presos.
Mais ou menos às 3 horas da tarde, já sabíamos que o pavilhão seria invadido pelo batalhão de choque. Todos resolvemos nos desarmar, jogando fora, pelas janelas (ventanas), as facas e pedaços de madeira. Não existiam também botijões de gás, isso porque nossos fogões são braseiros elétricos.
Os presos gritavam: “A polícia tá subindo”. Ficamos em silêncio, mas logo esse foi quebrado. Quebrado com gritos pavorosos, latidos de cães e muito barulho de tiro. Pensávamos que os tiros estavam sendo dados apenas para nos assustar, mas, na medida em que atiravam, muitos presos gritavam e logo silenciavam para sempre. Rajadas de metralhadora, sons estrondosos de espingarda cartucheira caibre 12, barulho de bombas, latidos de cachorro, gritos de dor e sofrimento eram ouvidos por todos. Estávamos com muito medo, ouvimos policiais da Rota gritarem: “Aqui é a ROTA, seus filhos da puta, vocês são lixo, animais e precisam morrer”. Vimos policiais chegarem nos guichês dos xadrezes, colocarem a metralhadora apontada para dentro e metralharem todos, como se fossem ratos. Rezei muito, nunca rezei tanto na vida, mas o terror havia tomado conta de mim e eu sabia que logo chegaria a minha hora.
Encontrava-me num xadrez com mais oito companheiros, todos completamente nus. Quando os policiais chegaram no guichê, gritamos que não atirassem e abrimos a porta. Na porta havia um policial que, com uma faca, tentava nos furar conforme passávamos correndo por ele. Corremos por uma galeria escura, cheia de cachorros, policiais armados de faca, metralhadoras, pedaços de pau, o verdadeiro corredor da morte. Vi um dos policiais apontar o revólver na minha direção e apertar o gatilho, levava pauladas e facadas que não me acertavam, porque eu corria e gritava muito. Todos que conseguiram correr tiveram mais sorte do que os que obedeceram às ordens dos policiais. Muitos que escorregavam na galeria eram mortos. Eles caíam e eram devorados pelos cachorros, eram esfaqueados pelos policiais, eram fuzilados covardemente. Consegui descer ao pátio em que havia muitos presos rendidos, sentados nus, com as mãos na cabeça. Chovia muito, ficamos horas e horas ali sentados, ouvindo tiros e gritos, o que nos atormentava. Um dos policiais que se encontrava no pátio falou: “Já morreu cem. Morrendo mais cem está bom. Vai tremendo porque logo chega a sua vez”. Não sabia mais no que pensar, apenas esperava a minha hora.
O dia foi embora, a escuridão tomou conta de tudo, a noite estava começando e ainda tinha muita coisa para acontecer. Depois de escurecer mais, eles deram ordem para os primeiros presos levantarem e andarem rápido. Eles iam subir para o pavilhão. Pensei que o terror já havia acabado, mas não. As três primeiras filas de presos que subiram foram recebidas com mordidas de cães, tiros e facadas. Todos foram mortos. Havia muitos feridos que aguardavam socorro numa fila separada, enquanto os outros subiam para o pavilhão. Chegou a minha hora de subir e eu só podia andar olhando para o chão. Vi as marcas da devastação. Muitos corpos estavam amontoados no chão. Colocaram-me numa cela pequena com mais trinta presos, não dava nem pra respirar. Onde eu me encontrava dava pra ver o pátio e foi quando vi todos os companheiros no pátio, aqueles feridos que aguardavam socorro, ser levados pra dentro da escolinha e ser metralhados. Eles gritavam, mas não por muito tempo, porque foram mortos. Fiquei abismado com o que tinha visto. Já parecia madrugada quando vi presos carregarem cadáveres logo depois e ser mortos. Não via a hora de aquilo tudo acabar. Ficamos contando os cadáveres que passavam carregados pelo pátio e a conta já ultrapassava duas centenas. O dia chegou, amanheceu, não havia mais PMs, começamos a andar nas galerias e vimos que as marcas da destruição eram bem maiores do que imaginávamos. As galerias pareciam rios de sangue, com mais de um palmo de altura, muito sangue misturado com água. Havia xadrezes lotados de cadáveres, o poço do elevador estava cheio de cadáveres.
Muitos feridos à bala, facada e paulada andavam na galeria procurando seus companheiros, e muitos não eram encontrados.
Um massacre, jamais esquecerei do que aconteceu aqui.
Perdi um amigo que era pai de três filhos e já estava no direito de semi-aberto. Os PMs mandaram ele e mais dois companheiros do 331-I pôr a cabeça na privada e atiraram, matando os três ao mesmo tempo.

Carta de M.A.S. para o Núcleo de Estudos da Violência/USP, São Paulo, em 12 de outubro de 1992. Arquivo Regina Célia Pedroso. Publicada no livro “Carandiru 111” de Doug Casarin.

Colunista:

Francisco Flávio Simões Neto